Trabalho degradante ainda assola o campo

Apesar dos avanços ocorridos nos últimos anos, a atividade agrícola continua descumprindo direitos assegurados pelo Estado ao trabalhador rural. Praticamente todas as autuações realizadas pelos auditores fiscais são relativas ao chamado trabalho degradante – conjunto de ações que caracterizam condições impróprias ou humilhantes ao trabalhador.

Até o dia 19 deste mês, foram lavrados 2.363 autos de infração, um leve recuo em relação à média dos últimos cinco anos.
O fornecimento de água potável continua sendo uma das infrações mais comuns. E quase sempre vem acompanhada de outras: alojamentos inadequados, sanitários insuficientes, falta de equipamentos de segurança e transporte coletivo inapropriado. Segundo o governo, o conjunto dessas violações assola todas as culturas agrícolas do país.

O trabalho degradante ainda é uma característica do campo brasileiro, embora a situação tenha melhorado bastante nos últimos anos, diz Marcelo Campos, assessor da Secretaria de Inspeção do Trabalho, vinculada ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Não há uma atividade rural livre disso hoje, de plantações de morango e erva-mate à cana.

O grande nó está no cumprimento da Norma Regulamentadora (NR) 31, do Ministério do Trabalho e Emprego, editada em março de 2005 e que rege a segurança e a saúde no trabalho. É ela que possibilita aos fiscais caracterizar o que é degradante, de acordo com as condições de alojamento, alimentação, transporte, equipamentos para proteção e carga horária, entre outros itens.

Diz a norma, por exemplo, que os dormitórios devem ter camas com a distância mínima de 70 centímetros, pé direito de três metros de altura, lavatório e chuveiro aquecido. O local para refeições deve ter pisos impermeáveis e laváveis e mesas de tampo liso. A água potável é obrigatória: deve ser fornecida fresca e em quantidade suficiente para a necessidade humana. A NR determina ainda a instalação sanitária para um grupo de cada 20 trabalhadores.
Boa parte dessas regras, porém, são ignoradas. Sob o ponto de vista das empresas, pela dificuldade de implementá-las. No olhar do governo, pela cultura de negação dos direitos no meio rural, onde a informalidade ainda é muito superior à do meio urbano. Não existe cumprimento de direitos sem custo. Empregadores acostumados a não cumprir a lei, quando são instados a fazê-lo, tendem a se surpreender com os custos e preferem manter-se na ilegalidade, afirma Campos, do MTE.

O aumento da fiscalização no trabalho desde 2005, uma das prioridades do governo federal, trouxe à tona infrações antes restritas a Estados problemáticos. Em São Paulo, o número de autuações tem crescido de forma significativa na citricultura. No Paraná, nas culturas de pinus e erva-mate. A cana-de açúcar, em Goiás e Minas Gerais, e a cadeia produtiva dos frigoríficos no Mato Grosso e Pará. Café, algodão e sisal respondem pela maioria das autuações por trabalho degradante na Bahia. Isso mostra que o trabalho degradante não está confinado ao Pará e Mato Grosso, diz Débora Tito, coordenadora da Procuradora do Trabalho.

Mas há uma questão de fundo que preocupa o setor produtivo: a autonomia funcional do fiscal. Isso significa que é possível entender a mesma norma de maneiras diferentes. Se para um o banheiro está bom, outro fiscal pode pensar o contrário – a interpretação subjetiva inerente ao Direito.

Outro complicador para o produtor é que trabalho degradante e escravo são considerados iguais para o MTE. A mudança ocorreu em 2003, com as mudanças incorporadas ao Código Penal. Até então, trabalho escravo era o sistema de endividamento ou cerceamento de liberdade de ir e vir. Desde então, jornadas exaustivas, exigência de produtividade além da capacidade do trabalhador e trabalho degradante também colocam a empresa na categoria.

Há abusos na interpretação de normas e despreparo dos fiscais, diz o advogado Túlio de Oliveira Massoni, do Mascaro & Nascimento Advogados, de São Paulo.
Segundo o MTE, menos de 10% das empresas na lista negra do trabalho escravo no país estão lá só por trabalho degradante. Se o empregador não tem a sensibilidade de dar água, vai se preocupar com o resto?, questiona Campos. Isso sempre vem associado a outras irregularidades.

Para a União da Indústria da Cana-de-Açúcar (Unica), no entanto, é necessária uma revisão profunda da NR 31. Segundo Elimara Sallum, consultora para questões trabalhistas e sindicais da entidade, a norma regulamentadora trouxe melhorias mas dispositivos de difícil aplicação. O campo é ligado a usos e costumes. E não se muda costumes em alguns anos. É importante ter uma norma que possa ser aplicada.

O setor é um dos que continua a ser autuado pela falta de acesso à água, segundo o MTE. Questionada, a Unica afirmou que cada trabalhador recebe um galão para cinco litros de água, abastecido em um ônibus que é enviado diariamente à beira do canavial.

Fonte: Udop, em 25/10/2010

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